terça-feira, 29 de outubro de 2013

Sorrisos

Essa é a primeira poesia que escrevi. Estou cursando Poesia Surrealista na faculdade e o professor solicitou que escrevêssemos algo inspirados em União Livre do André Breton, propulsor do Movimento Surrealista. Se interessarem, leiam também a poesia do Breton e pesquisem sobre o Surrealismo, a poética deles - que é mais um tratado ideológico do que propriamente uma poética como é a aristotélica - é extremamente intrigante. Vale a pena conhecer.

Ah, e claro, não juguem o Surrealismo pautados nesse meu negócio experimental aqui. É só isso, experimental.

Sorrisos

Meu sorriso é farsa dissimulada diante do olho-lua enviesado
Com o calor acinzentado, o amor azedado
A vida em frangalhos de felicidade no dia da submissão
Meu sorriso adornado pela mancha lúgubre da devassidão
Com retidão perversa em borras de chocolate que amarga o ventre do meu pai
Meu sorriso contagioso de sarcasmo numa imagem vultuosa de carícias
Meu sorriso em forma de alazão indomável diante da índia voluptuosa
De cor escura e filetes de espinhos nos seios enrijecidos
O córrego negro descendo em seu dorso e se debulhando em fios ao vento ardente
é vapor
Meu sorriso é marca diluída de uma sensação que escapou pelos vermes-rosados gemendo-sexo na minha face
Meu sorriso de verdades incontestáveis como a vida
Cuja relativa obscuridade do útero remete à turva negritude que abraça a terra
Abraça o sol e as estrelas e os planetas de um nome só
E morre no fim porque a vida era fantasia cigana em jogos do acaso
Meu sorriso em fios ardentes de águas subterrâneas
Que alarga a face e sobe à superfície voando livre nas nuvens
Que umedece a terra com seus cadáveres putrefatos
Esterco de árvores num ciclo panteístico
Meu sorriso entreaberto bebendo a gota ambígua d’fogo salgado que reverbera ascendente dos olhos
Meu sorriso que um dia confiou e definhou ao som da sagrada mentira em capa velha e encardida
Meu sorriso envaidecido de gratidão
Do ego que ecoa nos espelhos internos e se estilhaça em frivolidades cortantes
Meu sorriso individualista
Meu sorriso coletivista
Qual?
Meu sorriso insosso é um luxo de veneração à imagem disforme da Santíssima Trindade
Corroída pelos tempos sórdidos do Ocidente perdido em si
O homem às cegas que encontra apoio na guilhotina travestida de dossel do amor
Meu sorriso que se desfoca para gargalhar mas morre
Como enxame de abelhas atacadas pela pedante fogueira capitalista
Meu sorriso rumina quando erva daninha
Meu sorriso relincha quando galinha
Cisca quando jaguar
Ruge quando égua
Guincha lá o CPU
Meu sorriso com diastemas por onde pia ensurdecedor o profético assovio das elfas esfíngicas
Saídas dos abismos ancestrais dos dentes
Proclamadoras de morte sedutora ao ouvido
E à natureza o véu desce a se desfazer em apocalipse
Meu sorriso que ao acolhimento infernal mergulha sôfrego
E ao nirvana alcança na sublime figura messiânica da Yemanjá caminhando sobre o oceano revoltoso
E no fim
Da atroz pressão da terra adubada em ódio e amor sempre surgirá
Meu sorriso em harmonia musical
Fedendo às páginas antigas que construíram o vassalo-senhor
Iluminado pela inomenclatura Humana.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

A noite que sucede a vida

Leiam esse conto estranho aí; escrevi ele há tempos mas só agora me toquei pra postar. É razoável.


A noite que sucede a vida

Na esquina o carro vira, a criança grita, o policial na rua corre. A morte ampara a vida em consonância com a noite que sucede ao derradeiro pôr do deslumbrante sol.

A vida nem sempre é tão magnífica quanto o brilho de sol do dia anterior. Este, no entanto, nem sempre é tão imponente. Existem dias nebulosos, em que o sol não dá a sua verdadeira face ao mundo nem se prontifica a dissipar a neblina e as trevas que prevalecem fora de tempo. Falta de chance? Cansaço? Vá saber. Como o sol que não brilha quando isso é sua obrigação, há vidas que não aproveitam o que podem fazer neste mundo de contradição e morbidez, e a morte os alcança, sob a forma de noite. Então dia se foi, noite chegou, o mundo continua o mesmo. Contesto! É relativo absoluto. A imutabilidade é absolutamente inexistente.

Vá, pequeno! Corra pelas ruas, divirta-se o quanto pode!

Torna a acontecer. O carro vira na esquina, a criança – no máximo 8 anos, quem dirá? – é atropelada. Voa longe e esfacela o seu rosto no asfalto. Graças às divindades piedosas, morre ainda no ar, após a pancada fatal do carro. O policial que vigia a rua – coitado – corre à cena e se prontifica a ver o fatídico dia em que seu primogênito perdeu a vida antes mesmo que seus pais fossem carregados pelos desgastados braços da morte, a entidade maldita por toda boca que vaia Roma.

Treme, chora, faz escândalo. Por sorte vê que o assassino de seu filho tivera compaixão e ficara lá na rua, tentando amparar a mãe da criança que chorava o choro copioso e desesperado das mães, as únicas que amam espantosamente com verdade. A pistola na mão do pai policial é vista com maus olhos pelos presentes que acercam o corpo morto do filho, mas ele não se importa. Sabe que de acordo com as leis de transito que tanto respeita, o outro não fizera nada errado. Mas que há? A mente só pensava em se vingar, a arma em sua mão era atraente e persuasiva, dizia ser resposta justa ao assassinato monstruoso que o homem desesperado perante ele cometera.

Aponta na cabeça, atira, mata.

E segue-se a justiça.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Assalto

Edgar Allan Poe é sempre uma boa influencia, não é? Para mim, sim. O cara é um gênio da ironia, do assassinato e do próprio raciocínio analítico, caracterizado pelo ato de observar. E afinal, o que é Sherlock Homes sem "Assassinatos na Rua Morgue"? Nada. 

O conto deste post foi fortemente inspirado na sensação que a minha leitura mais recente - um livro de contos do Poe - me trouxe. É um conto macabro, narra uma situação trágica e lúgubre, mas no fim eu achei o protagonista muito peculiar. Nunca escrevi algo nesse estilo, mas foi interessante. E a forma como eu tive a ideia é ainda mais peculiar... quem quiser saber, terá que me perguntar nos comentários. Agradeceria se o fizerem.

Boa leitura.

Assalto

A mulher me olhou e gritou esganiçada. Corri e tapei a boca dela com a mão. Em meu ouvido, o velho gongo soou baixinho. Eu não podia ter medo nem compaixão; precisava ter convicção para ameaçar. Se eles não fossem imbecis, tudo correria bem. Mas se fossem...

É bem provável que ela tenha gritado por causa da arma que estava em minha mão. Uma bela e potente arma, eu diria. Talvez eu fosse um idiota por aparecer assim abruptamente, mas quem me culparia? Este era apenas o meu primeiro assalto.

Tirei a fita adesiva e a corda da mochila em minhas costas, calei a boca da mulher e amarrei os pulsos e tornozelos dela. Enquanto se debatia no chão, desesperada, lançando em mim olhares pedintes, lágrimas escorreram por seu rosto. Essa imagem me trouxe à lembrança as vezes em que minha mãe teve convulsões antes do AVC que a levou para a eternidade. E isso me deixou com raiva, odeio me lembrar da morte da minha querida mamãe.

Nas escadas, ouvi o som atrapalhado de passos. Devia ser uma pessoa esperta, porque não fez escândalo, vinha sorrateiramente para saber o que estava acontecendo. Por pouco não fui pego desprevenido. Antes que aparecesse, deixei a mulher estirada no chão e corri ao canto da sala onde não podia ser avistado de imediato.

A mulher gemeu mais alto. Tinha percebido que alguém estava vindo, mas não pôde fazer nada. O som de passos lentos na escada parou por um segundo para ser substituído logo depois por passadas rápidas e apressadas. Um homem grisalho, mas não idoso, desceu os últimos degraus e correu até a mulher. Minha arma estava apontada para ele:

- Mãos ao alto e se afaste dela! – Disse, convicto.

O homem não correspondeu, o êxtase de ver a mulher – que provavelmente era sua parenta – daquele jeito fez com que ele não percebesse mais nada ao seu redor. Então ele começou a desamarrar a mulher, que com os olhos esbugalhados, tentava dizer algo ao outro.

- Para! Não desamarre ela!

Mas ele continuou a desamarrar, com os braços que tremiam atrapalhando-o no ato, sem mostrar nenhuma reação ao que eu disse. Nem mesmo ousou levantar o olhar em minha direção. O velho gongo soou em minha mente, desta vez um pouco mais forte. Não consegui suportar. Apertei o gatilho e um som mudo invadiu a sala, estilhaçando o cenário de murmúrios e gemidos do casal.

O buraco que se formou na testa do homem pareceu fatal. Mas obviamente era. Ele havia caído no chão poucos segundos depois, o sangue jorrando aos montes por aquele orifício tão pequeno, sujando de um belo vermelho o tapete da sala bem ornamentada. A mulher se imobilizou instantaneamente com a queda do outro, e por um minuto tudo permaneceu num silêncio que me atormentou profundamente.

Um som indefinível trespassou o adesivo que tampava a boca da mulher. Era agudo e dilacerava a alma. As lágrimas que desceram dos olhos brilhantes e encharcados dela explicitavam uma tristeza escabrosa. Eu quis voltar no tempo, leitor, mas já não podia. O único jeito foi continuar mesmo...

Com passadas rápidas e longas, avancei até a mulher que estava sentada de um modo desajeitado, observando o homem que teimava em continuar gorgolejando sangue no chão. Toquei em seus ombros delicadamente, mas ela soltou um chiado tão melancólico de medo, mais por meio do nariz que pela boca, que eu fiquei estático. Escorreria catarro das narinas dela. Ela se jogou no piso e começou a se remexer para todos os lados, numa tentativa alucinada e infrutífera de se afastar de mim.

Balancei a cabeça negativamente, com o rancor aumentando em meu coração. Aquela criatura sórdida devia pedir para que eu a matasse ao invés de tentar fugir e manter a vida longe do homem pelo qual chorava tão desesperadamente. Aquilo era só uma farsa para me emocionar, ela não devia sentir nada por ele.

Peguei com brusquidão os cabelos dela e a puxei escada acima sem prestar atenção às lamurias de dor e medo que ela tentava soltar, mas que falhava por causa da bendita fita. Eu tinha que me lembrar de agradecer ao chefe pela sugestão tão eficiente de usar aquele adesivo.

No topo, fui até a porta entreaberta do corredor, entrei e tranquei-a por dentro. Era um escritório. A mulher ainda chorava, mas desistira de gritar. Apenas fungava com força, tentando buscar fôlego. Coloquei um dedo em meus lábios e falei:

- Agora você vai ficar calada e só responder o que eu preciso. Juro que não vou te fazer mal. – Menti, mas este é um daqueles famosos casos em que a verdade é inoportuna.

Agachei ao seu lado e arranquei o adesivo que tampava sua boca. Ela queixou-se da dor, mas sem gritar. Ofegou um pouco e me fitou com aqueles olhos suplicantes, cheios de água. Será que ela estava mesmo triste?

- Eu só quero saber onde está o maldito cofre. Só isso.

Ela me observou com atenção, mas o que eu disse pareceu fazer com que ela chegasse, lá no fundo de sua mente, a uma conclusão do que aconteceria no final de tudo. Seus olhos sempre brilhosos derramavam lágrimas outra vez. Ela começou a soluçar baixo enquanto chorava copiosamente. Meus olhos também se encheram de água involuntariamente.

- Só me diga onde está o cofre. – As lágrimas escoriam por meu rosto enquanto eu me aproximava vagarosamente da mulher imóvel. – Onde?

Sem respostas. Apenas choro. O gongo soa em minha mente outra vez, agora alto demais. Isso já estava me enjoando. Tirei a faca da mochila e encostei-a brutalmente no pescoço da mulher, que voltou a ofegar com medo, mas o desespero anterior havia sumido.

- Vai dizer onde está a merda do cofre ou não? – Cuspi.

Ela abriu a boca, mas apenas um grito saiu de lá. Recoloquei rapidamente o adesivo e estapeei a cara dela, que voltou a ficar quieta. Ela não me contaria nada. Como era idiota... E seus olhos brilhavam de tal forma... me hipnotizavam. Enfiei a faca no seu olho direito, afundei e girei. Ela urrou e se sacudiu, esperneando de tal forma e com tal brusquidão e descontrole, que temi ter matado logo no primeiro ataque. Arranquei a faca de seu olho, mas ela continuou a rolar pelo chão, chiando um emaranhado de sons incompreensíveis. O que ela sentia era só dor, o espaço para sentir falta do outro já não existia...

Eu a assistia também chorando sua situação, mas ela não se acalmava. Comecei a ficar impaciente... O gongo, sempre o gongo. Zumbiu em meu ouvido tão alto que na hora pensei ter sofrido uma lesão nos tímpanos. Coloquei as palmas da mão tampando os ouvidos, esperando a dor parar. Depois agachei ao lado da mulher, segurei-a pelo pescoço e fitei com intensidade odiosa sua face. As lágrimas se transfiguraram, agora eram de sangue escarlate. Sangue infindável. A visão deles não me acalmava.

Vi no olho intacto da mulher um misto dúbio de tantos sentimentos, que hoje chego a cogitar que ela me amou – mais do que o próprio homem que eu havia matado em sua frente. Há sempre aquele sentimento de compaixão para com o vilão dos enredos ficcionais, não é?

Dilacerei a goela da mulher com a faca. Sangue e mais sangue espirou para todo lado, mas ao menos ela ficou quieta. Enfim, estava em paz. E o melhor: com o outro homem que ela amava. Me senti calmo e até com um resquício de felicidade com essa notícia. Eu nunca poderia ter correspondido ao amor que ela sentiu por mim. 

O resto daquele dia tão cheio de brilhos e sons eu gastei à procura do cofre, mas só encontrava documentos espalhados pela casa. Eu era analfabeto, nunca soube o que estava escrito neles. Antes do sol se pôr, coloquei uma roupa limpa, guardei todos os documentos e evidências em minha mochila e saí da casa pela porta da frente, tranquilo.

***

Um jovem alto e forte, de no máximo 25 anos, trajando roupa preta e carregando uma mochila da mesma cor nas costas trancava a porta da casa. Um estudante indo para a faculdade ou visitar um amigo. Quem sabe?

Deixou a chave pendurada na fechadura. Virou-se, respirou fundo, restabelecendo ao seu rosto uma coloração forte e vivaz. Sorriu. Parecia estar feliz. Depois começou a andar, chegou a rua e caminhou calmamente pela calçada.

Fixada na porta da casa havia uma bela placa negra onde se lia em letras brancas:

Aqui vive uma família 
surda, mas feliz.